Lição 4

Casos Práticos e Tendências do Setor

Este módulo apresenta em detalhes os requisitos operacionais e de licenciamento para entidades que emitem ARTs ou EMTs conforme o MiCA. Analisa o processo de autorização, os padrões de adequação de capital, as normas de governança, as obrigações de transparência e a supervisão contínua. A seção ainda evidencia como os emissores devem organizar suas operações para cumprir as exigências regulatórias.

Introdução

A entrada em vigor do Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA) vem transformando o mercado europeu de stablecoins. Os efeitos já aparecem não só em registros regulatórios, mas também nas decisões estratégicas dos principais emissores, instituições financeiras e prestadores de serviços de criptoativos. Este módulo explora como as regras vêm influenciando a composição do mercado, as respostas operacionais dos emissores em conformidade e a reestruturação do ecossistema de ativos digitais em antecipação ou reação ao MiCA.

Compreender essas respostas do setor oferece uma perspectiva prática sobre como um arcabouço regulatório teórico se traduz em comportamentos reais de mercado. Os estudos de caso apresentados ilustram a variedade de abordagens à conformidade, o posicionamento estratégico das empresas em busca de vantagem competitiva e os desafios enfrentados nesse percurso.

Circle e o Modelo EMI para Emissão de EMT

Em julho de 2024, a Circle tornou-se a primeira empresa não bancária a obter uma licença de Instituição de Dinheiro Eletrônico (EMI) no âmbito do MiCA, concedida pela Autoridade de Supervisão Prudencial e de Resolução francesa (ACPR). Essa licença permitiu que a Circle oferecesse o USDC e o EUROC, este último denominado em euro, como E-Money Tokens (EMTs) plenamente conformes em toda a União Europeia.

Obter uma licença EMI sob o MiCA exige comprovação de solidez de capital, gestão de liquidez e práticas de governança. A Circle adaptou sua estrutura de reservas para atender às exigências de lastro e segregação 1:1 previstas pelo MiCA, com todos os recursos depositados em instituições financeiras reguladas na União Europeia. Reconciliações diárias e atestados públicos se tornaram rotinas obrigatórias, e os processos de resgate foram reestruturados para permitir conversão imediata pelo valor nominal, tanto em euro como em dólar.

O modelo de conformidade da Circle também passou a incorporar divulgações exigidas pelo MiCA em seus white papers públicos, com detalhamento de riscos como possíveis interrupções em infraestrutura bancária fiduciária e exposições a mudanças na política monetária. Ao centralizar sua emissão sob uma licença francesa, a empresa passou a se beneficiar do sistema de passaporte da UE, podendo disponibilizar seus EMTs em todos os países-membros sem necessidade de aprovações adicionais.

EURCV da Société Générale: Um ART de Origem Bancária

A Société Générale-Forge, divisão de ativos digitais do grupo bancário francês, lançou o EURCV em dezembro de 2023. O EURCV é um Asset-Referenced Token (ART) que mantém seu valor com base em uma carteira diversificada, composta por títulos soberanos em euro, equivalentes a caixa e depósitos bancários de curto prazo. Essa estrutura, aliada ao papel de emissor do banco, posicionou o EURCV como um dos primeiros ARTs plenamente bancarizados e alinhados com as normas do MiCA.

Segundo o MiCA, o EURCV exigiu autorização como ART, com a apresentação de um white paper detalhado ao regulador francês, descrevendo metodologia de gestão de reservas, procedimentos de avaliação de ativos, direitos de resgate e estruturas de governança. As reservas são auditadas trimestralmente por auditores independentes, com resultados publicados no portal de ativos digitais do banco para garantir a transparência exigida pelo MiCA.

A emissão do EURCV integra a estratégia da Société Générale de oferecer produtos financeiros tokenizados, aproximando a banca tradicional de atacado das aplicações de finanças descentralizadas (DeFi). Ao lançar um ART regulado, o banco deixa claro seu objetivo de ganhar participação no segmento institucional de DeFi, disponibilizando um instrumento colateral regulado em euro para protocolos de empréstimo, liquidação de valores mobiliários tokenizados e financiamento de comércio exterior.

EURI do Banking Circle: Foco em Pagamentos Internacionais

O Banking Circle, banco de Luxemburgo especializado em soluções de pagamentos transfronteiriços, lançou o EURI em meados de 2024 como EMT atrelado ao euro, em conformidade com o MiCA. Diferentemente dos stablecoins voltados ao varejo, o EURI foi desenvolvido especialmente para liquidações institucionais entre bancos e fintechs, priorizando velocidade e eficiência de custo em fluxos multicurrency.

A estratégia de conformidade consistiu em integrar sua plataforma de emissão de EMTs diretamente à infraestrutura já existente de bancos correspondentes, permitindo a liquidação instantânea de EURI com outras moedas fiat suportadas pelos parceiros. O Banking Circle também estabeleceu pools de liquidez para viabilizar resgates contínuos (24 horas por dia, 7 dias por semana), funcionalidade necessária para tokens voltados a instituições que operam em múltiplos fusos horários.

A aceitação do EURI por provedores de pagamento europeus é resultado de sua total aderência ao MiCA, que garante confiança em sua política de liquidez, qualidade das reservas e governança. O caso ilustra como stablecoins aderentes ao MiCA podem ser integrados à infraestrutura financeira existente sem focar diretamente o consumidor final.

Respostas das Exchanges: Delistagens e Re-listagens

À medida que os prazos do MiCA se aproximaram, as principais exchanges de criptoativos ajustaram seus portfólios para garantir aderência à regulação. Em outubro de 2024, a Coinbase anunciou a remoção de vários stablecoins não conformes para clientes da UE, citando a incapacidade dos emissores de atender às exigências de reservas, licenciamento ou divulgação do MiCA. Essa medida preventiva reflete a avaliação de risco jurídico pela exchange e a intenção de manter operações contínuas no bloco europeu.

Algumas exchanges adotaram re-listagem gradual, recolocando tokens à medida que os emissores conquistaram as autorizações necessárias. A Binance, por exemplo, inicialmente restringiu o acesso de usuários da UE a determinados stablecoins indexados ao dólar, mas os reintroduziu em algumas jurisdições após atualização da conformidade por parte dos emissores. Esses ajustes reforçam o papel das exchanges como guardiãs essenciais da aderência regulatória nas negociações de criptoativos.

A Ascensão Estratégica dos Stablecoins em Euro

O MiCA impulsionou o interesse nos stablecoins denominados em euro, tanto por incentivos regulatórios como pela visão do Banco Central Europeu, que considera tais instrumentos potencialmente benéficos para fortalecer o papel global do euro em pagamentos. Com tokens atrelados ao dólar sob inspeção mais rigorosa, emissores passaram a diversificar suas ofertas com stablecoins baseados em euro para manter protagonismo no mercado europeu.

Várias fintechs e instituições de pagamento consolidadas já protocolaram pedidos para emitir EMTs lastreados em euro, prevendo demanda de comerciantes, processadoras de pagamentos e plataformas de e-commerce transfronteiriço. A expectativa é que stablecoins em euro e aderentes à regulação complementem o lançamento do euro digital, criando um ecossistema avançado no qual moedas digitais públicas e privadas coexistam.

Custos de Conformidade e Consolidação de Mercado

Os custos operacionais para se adequar ao MiCA são elevados, sobretudo para pequenos emissores. Cumprir padrões de auditoria de reservas, organizar estruturas de custódia sediadas na UE e produzir white papers validados por reguladores exige investimentos substanciais em jurídico, contabilidade e operações.

Para alguns, esses custos motivaram a saída estratégica da União Europeia. Outros buscaram parcerias ou aquisições para acessar infraestrutura já licenciada pelo MiCA, em vez de desenvolver soluções próprias. Essa tendência aponta para uma provável consolidação do mercado europeu de stablecoins, com menos emissores, porém mais robustos e plenamente conformes dominando a oferta.

Impacto na Integração ao DeFi

A adequação de determinados stablecoins ao MiCA abriu novas possibilidades para participação regulada em DeFi. EMTs e ARTs em conformidade vêm sendo utilizados como colateral em protocolos de empréstimos descentralizados voltados a instituições, como pools permissionados para entidades verificadas.

A capacidade de integrar stablecoins conformes ao MiCA em produtos financeiros on-chain, mantendo segurança jurídica, atraiu o interesse de gestores de ativos tradicionais interessados em explorar estratégias de rendimento tokenizado. Contudo, as exigências de permissionamento e KYC desses tokens restringem sua circulação irrestrita, limitando sua adoção em protocolos abertos e permissionless.

Emissores Globais e Arbitragem Regulatória

Uma questão ainda não totalmente resolvida diz respeito ao tratamento de stablecoins globais emitidos dentro e fora da União Europeia. Certos emissores mantêm estruturas duplas—oferecendo versões conformes ao MiCA para clientes europeus, enquanto mantêm alternativas não reguladas em outros mercados. Críticos alegam que tais esquemas podem enfraquecer os objetivos do MiCA, especialmente quando os tokens permanecem fungíveis entre ambientes regulados e não regulados, permitindo que riscos ingressem indiretamente no mercado europeu.

Os reguladores da UE reconhecem o risco de arbitragem regulatória e indicaram foco na vigilância da fungibilidade entre versões conformes e não conformes do mesmo token. A EBA pode impor controles adicionais sobre tokens relevantes caso identifique vulnerabilidades sistêmicas associadas a fluxos transfronteiriços.

Perspectivas para o Setor

A implementação do MiCA estabeleceu novo padrão internacional para regulação de stablecoins, sendo observada atentamente em outros mercados. Os primeiros indícios demonstram que a conformidade ao MiCA pode ser uma vantagem competitiva, especialmente para emissores focados em adoção institucional.

Nos próximos 12 a 18 meses, espera-se que o mercado europeu de stablecoins se consolide, com um menor número de emissores altamente confiáveis oferecendo tokens denominados em euro e dólar. Parcerias com plataformas DeFi reguladas, redes internacionais de pagamentos e a integração ao euro digital devem marcar a próxima fase do desenvolvimento do setor.

Emissores que incorporaram os requisitos do MiCA para transparência, reservas e resgate posicionam-se não apenas para sobreviver no ambiente europeu, mas também para liderar o debate global sobre o futuro do dinheiro digital regulamentado.

Isenção de responsabilidade
* O investimento em criptomoedas envolve grandes riscos. Prossiga com cautela. O curso não se destina a servir de orientação para investimentos.
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